A propósito da utilidade da arte e da beleza, deixo-vos aqui uma das crónicas mais bonitas que já li. É da autoria do José Eduardo Agualusa e for escrita para O Globo, em Agosto do ano passado.
Espero que gostem!
Maria Brazão Sousa
As belas coisas inúteis que
nos salvam a vida
Ou olhamos para a poesia como algo inútil, ou exigimos que nos salve a
nós e ao mundo
A poeta portuguesa Matilde
Campilho foi este ano uma das estrelas da Flip. “A poesia não salva o mundo,
mas salva o minuto”, disse, a determinada altura. A frase foi muito citada em
Paraty. Acho isto curioso: ou olhamos para a poesia como um exercício inútil,
ou exigimos à poesia que nos salve a nós e ao mundo. Nunca ouvi ninguém fazer o
mesmo tipo de pergunta a um gramático ou a um geólogo: “A gramática já lhe
salvou a vida?” Ou: “Acha que é possível alcançar Deus através da geologia?”
Matilde tentou, de forma
elegante, permanecer poeta sem parecer demasiado doida. Devia ter optado pela
doidice. Se é para ser poeta, não há que temer a loucura. Se é para ser louco,
que seja com poesia.
Na verdade, acho muito mais
provável a poesia salvar vidas do que a gramática. Posso imaginar a história de
um tipo desesperado, disposto a lançar-se da janela de um décimo andar, após
ter perdido a fortuna, os filhos ou a mulher amada. É então que surge alguém
que o faz mudar de opinião declamando versos de (cada leitor pode colocar aqui
o nome do poeta que o impediria de saltar). Já no caso de uma criança prestes a
afogar-se não me parece sensato atirar-lhe com versos. Mais vale atirar-lhe uma
boia.
Vamos então pela loucura: sim, eu
acredito que se não for a poesia a salvar o mundo, o mundo está perdido.
A poesia é uma intuição e na história
da ciência a intuição tem um papel fundamental. Os ingleses chamam serendipity aquelas
descobertas felizes, que parecem acontecer por acaso, mas que, na realidade,
obedecem às mesmas leis misteriosas da poesia. Como acontece com a poesia, a
serendipidade não resulta do acaso — implica um talento particular.
O termo serendipity foi
criado pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754, a partir de um conto
tradicional cingalês, “Os três príncipes de Serendip”. Os príncipes do conto
tendiam a fazer grandes descobertas por acidente. Serendip é o antigo nome dado
pelos comerciantes árabes à ilha de Ceilão, a Taprobana a que se refere Camões
nos “Lusíadas”.
Exemplos clássicos de
serendipidade são a descoberta da penicilina, por Alexander Fleming, ou a elaboração
da teoria da gravidade por Newton, depois que uma maçã lhe caiu na cabeça.
Cientistas propensos a esta
particular forma de epifania tendem a orientar-se por uma lógica poética,
revelando particular vocação para estabelecer relações entre objetos aparentemente
distantes e desconexos. Retiro um livro ao acaso da estante de poesia: A “Nova
antologia poética”, de Vinicius de Moraes. Abro-o e leio: “Pensem nas feridas/
como rosas cálidas”. Retiro outro: “O escriba acocorado”, do moçambicano Rui
Knopfli. Leio: “Ao longe um latir de cães estilhaça o sereno/ espelho do
horizonte em que trêmulas casuarinas/ perfilam a distância.” No primeiro
exemplo, Vinicius aproxima as feridas resultantes das queimaduras por radiação
de rosas cálidas. No segundo, onde a maioria das pessoas veria apenas a linha
do horizonte, Rui Knopfli viu um espelho estilhaçado pelo súbito latir de cães.
A poesia pode, pois, salvar o
mundo, ao estabelecer um outro tipo de pensamento no qual a intuição seja mais
relevante do que a lógica linear.
Posto isto, parece-me que
questionar a utilidade da poesia é tão absurdo quanto questionar a serventia da
música, da beleza ou do amor. Certa noite, numa aldeia perdida no meio do mato,
em Angola, ouvi um menino perguntar ao avô: “Para que servem as estrelas?” O
velho encolheu os ombros, suspirou e disse: “Não são ocorrências de servir, meu
neto. Estão lá só para fazer bonito.” A beleza é inútil e isso é tão lindo.
Uma outra excelente resposta à
questão da utilidade da poesia escutei-a, há anos, na Livraria da Travessa, de
Ipanema, durante um encontro de Ferreira Gullar com os seus leitores.
Questionado por uma moça, sentada no chão, diante dele, Gullar contou que, nos
tempos do exílio, no Chile, costumava almoçar todas as semanas com um grupo de
outros expatriados latino-americanos. Havia nesse grupo um economista
argentino, namorado de uma brasileira, que sempre se sentava junto de Gullar e
ficava o almoço inteiro falando de economia. Um dia perdeu a namorada. Nesse
dia sentou-se, como de costume, ao lado de Gullar mas não falou de economia.
Falou apenas de poesia. Durante o almoço inteiro não falou senão de poesia.
“Quando a morena vai embora”, concluiu Gullar, “a economia não tem serventia
alguma. Quando a morena vai embora só a poesia nos pode ajudar.”
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Grata pela partilha, Maria. E viva a beleza inútil que sempre e a cada instante nos salva e nos torna mais humanos!
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