quarta-feira, 4 de maio de 2016

''As belas coisas inúteis que nos salvam a vida'' José Eduardo Agualusa

A propósito da utilidade da arte e da beleza, deixo-vos aqui uma das crónicas mais bonitas que já li. É da autoria do José Eduardo Agualusa e for escrita para O Globo, em Agosto do ano passado. 
Espero que gostem!
Maria Brazão Sousa

As belas coisas inúteis que nos salvam a vida
Ou olhamos para a poesia como algo inútil, ou exigimos que nos salve a nós e ao mundo
A poeta portuguesa Matilde Campilho foi este ano uma das estrelas da Flip. “A poesia não salva o mundo, mas salva o minuto”, disse, a determinada altura. A frase foi muito citada em Paraty. Acho isto curioso: ou olhamos para a poesia como um exercício inútil, ou exigimos à poesia que nos salve a nós e ao mundo. Nunca ouvi ninguém fazer o mesmo tipo de pergunta a um gramático ou a um geólogo: “A gramática já lhe salvou a vida?” Ou: “Acha que é possível alcançar Deus através da geologia?”
Matilde tentou, de forma elegante, permanecer poeta sem parecer demasiado doida. Devia ter optado pela doidice. Se é para ser poeta, não há que temer a loucura. Se é para ser louco, que seja com poesia.
Na verdade, acho muito mais provável a poesia salvar vidas do que a gramática. Posso imaginar a história de um tipo desesperado, disposto a lançar-se da janela de um décimo andar, após ter perdido a fortuna, os filhos ou a mulher amada. É então que surge alguém que o faz mudar de opinião declamando versos de (cada leitor pode colocar aqui o nome do poeta que o impediria de saltar). Já no caso de uma criança prestes a afogar-se não me parece sensato atirar-lhe com versos. Mais vale atirar-lhe uma boia.
Vamos então pela loucura: sim, eu acredito que se não for a poesia a salvar o mundo, o mundo está perdido.
A poesia é uma intuição e na história da ciência a intuição tem um papel fundamental. Os ingleses chamam serendipity aquelas descobertas felizes, que parecem acontecer por acaso, mas que, na realidade, obedecem às mesmas leis misteriosas da poesia. Como acontece com a poesia, a serendipidade não resulta do acaso — implica um talento particular.
O termo serendipity foi criado pelo escritor britânico Horace Walpole em 1754, a partir de um conto tradicional cingalês, “Os três príncipes de Serendip”. Os príncipes do conto tendiam a fazer grandes descobertas por acidente. Serendip é o antigo nome dado pelos comerciantes árabes à ilha de Ceilão, a Taprobana a que se refere Camões nos “Lusíadas”.
Exemplos clássicos de serendipidade são a descoberta da penicilina, por Alexander Fleming, ou a elaboração da teoria da gravidade por Newton, depois que uma maçã lhe caiu na cabeça.
Cientistas propensos a esta particular forma de epifania tendem a orientar-se por uma lógica poética, revelando particular vocação para estabelecer relações entre objetos aparentemente distantes e desconexos. Retiro um livro ao acaso da estante de poesia: A “Nova antologia poética”, de Vinicius de Moraes. Abro-o e leio: “Pensem nas feridas/ como rosas cálidas”. Retiro outro: “O escriba acocorado”, do moçambicano Rui Knopfli. Leio: “Ao longe um latir de cães estilhaça o sereno/ espelho do horizonte em que trêmulas casuarinas/ perfilam a distância.” No primeiro exemplo, Vinicius aproxima as feridas resultantes das queimaduras por radiação de rosas cálidas. No segundo, onde a maioria das pessoas veria apenas a linha do horizonte, Rui Knopfli viu um espelho estilhaçado pelo súbito latir de cães.
A poesia pode, pois, salvar o mundo, ao estabelecer um outro tipo de pensamento no qual a intuição seja mais relevante do que a lógica linear.
Posto isto, parece-me que questionar a utilidade da poesia é tão absurdo quanto questionar a serventia da música, da beleza ou do amor. Certa noite, numa aldeia perdida no meio do mato, em Angola, ouvi um menino perguntar ao avô: “Para que servem as estrelas?” O velho encolheu os ombros, suspirou e disse: “Não são ocorrências de servir, meu neto. Estão lá só para fazer bonito.” A beleza é inútil e isso é tão lindo.
Uma outra excelente resposta à questão da utilidade da poesia escutei-a, há anos, na Livraria da Travessa, de Ipanema, durante um encontro de Ferreira Gullar com os seus leitores. Questionado por uma moça, sentada no chão, diante dele, Gullar contou que, nos tempos do exílio, no Chile, costumava almoçar todas as semanas com um grupo de outros expatriados latino-americanos. Havia nesse grupo um economista argentino, namorado de uma brasileira, que sempre se sentava junto de Gullar e ficava o almoço inteiro falando de economia. Um dia perdeu a namorada. Nesse dia sentou-se, como de costume, ao lado de Gullar mas não falou de economia. Falou apenas de poesia. Durante o almoço inteiro não falou senão de poesia. “Quando a morena vai embora”, concluiu Gullar, “a economia não tem serventia alguma. Quando a morena vai embora só a poesia nos pode ajudar.
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1 comentário:

  1. Grata pela partilha, Maria. E viva a beleza inútil que sempre e a cada instante nos salva e nos torna mais humanos!

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