1) Há uma semana encontrei um vídeo de propaganda lançado pelo Minstério do Turismo da Síria para promover o turismo na cidade de Aleppo, dividida entre forças de Assad e rebeldes. Na mesma semana em que, na zona Este da cidade, controlada pelas forças de oposição ao regime de Assad, foram assassinadas pelas forças estatais 338 pessoas e mais de 270.000 estão com acesso condicionado a comida, água e ajuda humanitária (dados da WHO). O vídeo é acompanhado por uma versão acústica da theme de "Game of Thrones". Já discutimos que ver é um processo complexo e que as sensações reconfiguram a informação visual. Com a música o vídeo torna-se uma apologia ainda mais clara à pretensa legitimidade da violência do Estado Sírio e à sua pujança militar que traz paz e estabilidade. Não sei se lhe possa chamar sequer uma narrativa implícita quando é tão assustadoramente explícita e coerente com as visões imperialistas de Assad e Putin.
2) Também na semana passada uma amiga partilhou comigo uma publicidade para o FIAT 500S que viu num mupi na paragem de autocarros da FCSH. Localização interessante para fazer publicidade a um carro desportivo, "com estilo", "só para bad boys" porque "todos adoram um rebelde", como encoraja o site da FIAT. Deixo aqui o spot publicitário. O texto visual é insidioso. Começa com uma equipa de cientistas a testar a segurança e a durabilidade do carro fechando as portas com força, dando pontapés aos pneus e, no final, batendo no capô do carro... com uma mala de senhora. Na cena que se segue o homem (o proprietário do carro, porque pelos vistos as mulheres não compram carros e são conduzidas) ouve calmamente a namorada a gritar consigo; esta acaba por sair do carro e reproduzir a cena anterior. O spot perpetua uma narrativa implícita sobre uma diferença fundamental entre homens e mulheres (racionalidade vs. irracionalidade, controlo vs. emoções desenfreadas que devem ser disciplinadas pelos homens) que é amplamente aceite por ser também ciclicamente replicada por anúncios como este. Como já vimos, a publicidade é um discurso vivo que simultaneamente reflete e incita à reprodução de ideologias de desigualdade vs. privilégio. Aliás, quem andou pelo Facebook já se deve ter cruzado com as declarações polémicas de um taxista na manifestação de hoje: "As leis sabe como é que são? São como as meninas virgens — são para ser violadas".
3) Dois documentários que estão a dar que falar - 13th e America Divided. O 13th já saiu na Netflix, para quem tiver. Aborda a questão do racismo institucional, de como foi construída a narrativa das pessoas negras como criminosas e dos homens negros como violadores, das prisões privadas e de como estas lucram com a população afro-americana... O America Divided só dá para ver numa plataforma específica, mas está a ser tão divulgado que provavelmente estará disponível em breve. Está dividido em 8 capítulos que abordam problemas sociais nos EUA desde a water crisis em Flint, até à especulação imobiliária, passando pela police brutality...
4) Westworld — a série da HBO que citei no título do post — é da autoria de Jonathan Nolan, o criador de Person of Interest e guionista de Interstellar. Opiniões pessoais à parte, aborda de forma muito inteligente as questões de o nosso campo de visão ser seletivo e de quem reconhecemos como humano. A série passa-se num parque temático virtual ao serviço de uma elite rica que pilha, viola e mata indiscriminadamente avatares virtuais.
5) Para terminar numa nota um pouco mais positiva recomendo-vos o meu filme favorito: Kubo and the Two Strings. É sobre a importância de ver o outro para o reconhecer como semelhante — os vilões não compreendem os humanos e as suas emoções porque são, literalmente, cegos e querem tirar os olhos do personagem principal, um contador de histórias mágico com o poder de apelar à humanidade e ao sentimento. É uma obra sobre a importância das histórias — de contarmos histórias, de fazermos sentido a partir de histórias de compaixão e perdão. É um filme de animação de um estúdio não muito conhecido, Laika, que só faz filmes em stop-motion. Trata-se de uma técnica interessantíssima e de uma abordagem diferente ao estilo da animação. O DVD sai a dia 22 de novembro e peço-vos que o comprem caso gostem, porque apesar de ser o filme da Laika com melhores críticas é o que menos está a arrecadar na bilheteira... É importante apoiarmos a criatividade e a inovação. Ah, e vejam por favor a versão original e não a péssima dobragem portuguesa. Segue o trailer:
Tenham uma boa semana!
Ricardo Roseiro, 48231
No que diz respeito ao ponto 2 do post, lembrei-me também do novo anúncio ao perfume Bad, da Diesel. A mesma lógica de insistência numa diferença de comportamentos está presente, mas parece-me sublinhar ainda mais a impessoalização de um dos elementos da relação. O actor Boyd Holbrook avisa uma mulher (de quem não podemos saber o nome, já que não aparece nos créditos) de que, entre outras coisas que não se afiguram propriamente apelativas, ela nunca saberá onde ele mora, e que por vezes lhe partirá o coração. A reacção dela escapa às do catálogo de atitudes expectáveis em que esperaríamos encontrá-la (e.g. ir-se embora, ou, com maior cortesia, desejar-lhe boa sorte e boa viagem) e resume-se a um sorriso vazio e a um beijo. Segue o link. https://www.youtube.com/watch?v=v2pottxAJtA
ResponderEliminarTiago Silva
Grata, Ricardo, pela partilha de um olhar crítico informado e diversificado sobre produtos visuais da cultura contemporânea sobre os quais é especialmente importante sermos capazes de pensar.
ResponderEliminarGrata por deitar mais achas na fogueira dos estereótipos de identidade de género criados pelo discurso publicitário, Tiago. Estas loiras não têm emenda ;)