segunda-feira, 10 de outubro de 2016

"First - have you ever questioned the nature of your reality?"


Boa noite, colegas. Para não fazer vários posts de seguida vou publicar neste só vários objetos de estudo interessantes que tenho recolhido e algumas sugestões que queria partilhar convosco. Vou tentar não me alongar muito.

1) Há uma semana encontrei um vídeo de propaganda lançado pelo Minstério do Turismo da Síria para promover o turismo na cidade de Aleppo, dividida entre forças de Assad e rebeldes. Na mesma semana em que, na zona Este da cidade, controlada pelas forças de oposição ao regime de Assad, foram assassinadas pelas forças estatais 338 pessoas e mais de 270.000 estão com acesso condicionado a comida, água e ajuda humanitária (dados da WHO). O vídeo é acompanhado por uma versão acústica da theme de "Game of Thrones". Já discutimos que ver é um processo complexo e que as sensações reconfiguram a informação visual. Com a música o vídeo torna-se uma apologia ainda mais clara à pretensa legitimidade da violência do Estado Sírio e à sua pujança militar que traz paz e estabilidade. Não sei se lhe possa chamar sequer uma narrativa implícita quando é tão assustadoramente explícita e coerente com as visões imperialistas de Assad e Putin.   


2) Também na semana passada uma amiga partilhou comigo uma publicidade para o FIAT 500S que viu num mupi na paragem de autocarros da FCSH. Localização interessante para fazer publicidade a um carro desportivo, "com estilo", "só para bad boys" porque "todos adoram um rebelde", como encoraja o site da FIAT. Deixo aqui o spot publicitário. O texto visual é insidioso. Começa com uma equipa de cientistas a testar a segurança e a durabilidade do carro fechando as portas com força, dando pontapés aos pneus e, no final, batendo no capô do carro... com uma mala de senhora. Na cena que se segue o homem (o proprietário do carro, porque pelos vistos as mulheres não compram carros e são conduzidas) ouve calmamente a namorada a gritar consigo; esta acaba por sair do carro e reproduzir a cena anterior. O spot perpetua uma narrativa implícita sobre uma diferença fundamental entre homens e mulheres (racionalidade vs. irracionalidade, controlo vs. emoções desenfreadas que devem ser disciplinadas pelos homens) que é amplamente aceite por ser também ciclicamente replicada por anúncios como este. Como já vimos, a publicidade é um discurso vivo que simultaneamente reflete e incita à reprodução de ideologias de desigualdade vs. privilégio. Aliás, quem andou pelo Facebook já se deve ter cruzado com as declarações polémicas de um taxista na manifestação de hoje: "As leis sabe como é que são? São como as meninas virgens — são para ser violadas".  


3) Dois documentários que estão a dar que falar - 13th e America Divided. O 13th já saiu na Netflix, para quem tiver. Aborda a questão do racismo institucional, de como foi construída a narrativa das pessoas negras como criminosas e dos homens negros como violadores, das prisões privadas e de como estas lucram com a população afro-americana... O America Divided só dá para ver numa plataforma específica, mas está a ser tão divulgado que provavelmente estará disponível em breve. Está dividido em 8 capítulos que abordam problemas sociais nos EUA desde a water crisis em Flint, até à especulação imobiliária, passando pela police brutality...




4) Westworld — a série da HBO que citei no título do post — é da autoria de Jonathan Nolan, o criador de Person of Interest e guionista de Interstellar. Opiniões pessoais à parte, aborda de forma muito inteligente as questões de o nosso campo de visão ser seletivo e de quem reconhecemos como humano. A série passa-se num parque temático virtual ao serviço de uma elite rica que pilha, viola e mata indiscriminadamente avatares virtuais.


5) Para terminar numa nota um pouco mais positiva recomendo-vos o meu filme favorito: Kubo and the Two Strings. É sobre a importância de ver o outro para o reconhecer como semelhante — os vilões não compreendem os humanos e as suas emoções porque são, literalmente, cegos e querem tirar os olhos do personagem principal, um contador de histórias mágico com o poder de apelar à humanidade e ao sentimento. É uma obra sobre a importância das histórias — de contarmos histórias, de fazermos sentido a partir de histórias de compaixão e perdão. É um filme de animação de um estúdio não muito conhecido, Laika, que só faz filmes em stop-motion. Trata-se de uma técnica interessantíssima e de uma abordagem diferente ao estilo da animação. O DVD sai a dia 22 de novembro e peço-vos que o comprem caso gostem, porque apesar de ser o filme da Laika com melhores críticas é o que menos está a arrecadar na bilheteira... É importante apoiarmos a criatividade e a inovação. Ah, e vejam por favor a versão original e não a péssima dobragem portuguesa. Segue o trailer:



Tenham uma boa semana!

Ricardo Roseiro, 48231

2 comentários:

  1. No que diz respeito ao ponto 2 do post, lembrei-me também do novo anúncio ao perfume Bad, da Diesel. A mesma lógica de insistência numa diferença de comportamentos está presente, mas parece-me sublinhar ainda mais a impessoalização de um dos elementos da relação. O actor Boyd Holbrook avisa uma mulher (de quem não podemos saber o nome, já que não aparece nos créditos) de que, entre outras coisas que não se afiguram propriamente apelativas, ela nunca saberá onde ele mora, e que por vezes lhe partirá o coração. A reacção dela escapa às do catálogo de atitudes expectáveis em que esperaríamos encontrá-la (e.g. ir-se embora, ou, com maior cortesia, desejar-lhe boa sorte e boa viagem) e resume-se a um sorriso vazio e a um beijo. Segue o link. https://www.youtube.com/watch?v=v2pottxAJtA

    Tiago Silva

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  2. Grata, Ricardo, pela partilha de um olhar crítico informado e diversificado sobre produtos visuais da cultura contemporânea sobre os quais é especialmente importante sermos capazes de pensar.

    Grata por deitar mais achas na fogueira dos estereótipos de identidade de género criados pelo discurso publicitário, Tiago. Estas loiras não têm emenda ;)

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