domingo, 4 de maio de 2014

"Growing up is...?"

Caros Colegas,

Enquanto procurava anúncios para utilizar no meu trabalho de grupo, deparei-me com este conjunto de anúncios da Nesquik chamados "Growing up is...". Esta campanha, criada pela agência publicitária McCann Erikson Portugal, mostra de um modo impressionante como os estereótipos sexistas ainda estão vivos e de boa saúde em pleno século XXI. O facto de o anúncio ser dirigido a crianças é um bom exemplo do poder destes estereótipos e ilustra como a nossa sociedade parece estar a regredir em termos de igualdade de género, inclusive a nível do marketing e do consumo (não me lembro de na minha infância, nos anos 90, haver iogurtes "para menino" e "para menina", como podemos ver hoje nas prateleiras dos supermercados...).
A forma como estes anúncios, aparentemente inócuos, transmitem uma ideia bem definida dos papéis de género "tradicionais" a crianças pequenas lembrou-me do texto de Roberta Sassatelli, em que se discute o grande poder da publicidade na construção e promoção de ideologias.
A ideia central do anúncio (cujo objecto é o conhecido chocolate em pó apreciado principalmente pelas crianças) é de que a infância é um período de liberdade e brincadeira e que as travessuras têm um papel central no nosso crescimento. Comparemos então os dois anúncios com um protagonistas masculinos e uma protagonista feminina. De facto, a assimetria começa logo ali: das quatro crianças representadas, só uma é menina. É também curioso como nenhum dos anúncios representa crianças dos dois géneros a brincar em conjunto.


Nestes anúncios, os meninos despenham um papel activo e "cool", através de comportamentos competitivos e agressivos. São retratados como ambicionando ser "super-heróis" e ter "naves espaciais", enfatizando-se características como a coragem, a liderança, a curiosidade, a competição e a criatividade. Os "disparates" cometidos pelas crianças do sexo masculino estão relacionados com a impulsividade e a tomada de riscos: comer pastilha-elástica ou comida de cão. Os rapazes estão rodeados de objectos e brinquedos tradicionalmente masculinos, como carros, robôs, espadas, bicicletas e ferramentas, aludindo às profissões e actividades normalmente associadas a homens. As suas roupas são práticas e adequadas à idade; no primeiro caso, o protagonista está simplesmente sujo de tanto brincar.

E a menina?


Para ela, crescer é "salvar animais" e "dar beijos como nos filmes". Os seus brinquedos são bonecas, peluches, roupas e maquilhagem. Ela tem um cão, mas este é usado como um bebé: um símbolo da sua vocação doméstica e maternal. A sua brincadeira consiste em vestir-se com roupas de adulta e saltos-altos, presumivelmente para imitar os modelos femininos que a rodeiam.
Nesta imagem, o papel social da mulher está bem explícito. As características enfatizadas são a passividade, a gentileza, a ternura maternal e a beleza. A imaginação da menina não está ocupada com projectos criativos/artísticos ou com aventuras como a dos meninos, mas sim com o ideal romântico apresentado nos filmes: os seus sonhos e projectos resumem-se a ter uma relação romântica e a ser mãe. Além disso, a ênfase dada à aparência exterior ocupa um plano predominante, transmitindo a ideia de que "ser bonita" (ou seja, adequar-se aos padrões de beleza predominantes na nossa cultura) é uma preocupação fundamental para as meninas. Ao contrário dos meninos, ela não tem comportamentos ousados nem é travessa ou mal-criada: a sua maior travessura é comer bolo — e a mensagem implícita é que o perigo não é ter uma dor de estômago, mas sim a possibilidade de engordar.

A mensagem retirada destes anúncios é bem simplista: todos os meninos são aventureiros, destemidos  e competitivos; gostam de guerras, acção, ficção científica, de destruir e construir coisas. Todas as meninas são passivas, sonhadoras e afectuosas; interessam-se por maquilhagem, roupas e tomar conta dos outros. 
(Atenção que não estou a querer dizer que as características ditas "femininas" sejam negativas ou inferiores, pelo contrário! A meu ver, não há nada de errado com gostar de bonecas ou de maquilhagem; o problema é a forma como se enfatiza a passividade, submissão e superficialidade na menina, em detrimento de características mais complexas e interessantes, e também a divisão tão marcada entre os géneros que é apresentada nestes anúncios.) 

Esta campanha levanta algumas questões interessantes sobre a nossa sociedade, supostamente moderna e igualitária, e sobre o modo como a publicidade afecta os papéis de género. Por exemplo: 
- Porque será que a representação papéis tradicionais de género na publicidade parece aumentar, em vez de regredir?
- Será que os estereótipos sexistas prejudicam só as mulheres? (E se um menino for carinhoso / sensível / romântico / gostar de bonecas?)
- Será ético reforçar papéis de género num anúncio dirigido a crianças pequenas? 
- Como podemos proteger as crianças da influência da publicidade?

Deixo-vos uns links que podem ser interessantes:
See Jane.org - projecto sobre a pouca representação de personagens femininas em programas infantis
Ads of The World - site que agrega anúncios de todo o mundo, em vários formatos

Rita Monteiro

1 comentário:

  1. Rita, grata pela partilha destas pérolas, e pela sua brilhante proposta de análise crítica!

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