Chegou-me esta carta aberta da escritora Teolinda Gersão, que penso ser interessante fazer circular pelos meios académicos.
Lisboa, 4.10.2014
Caros Caloiros:
Certamente sabem que, na praxe coimbrã, mãe de todas
as praxes, o caloiro é tradicionalmente
“o animal”. Como também julgo que sabem, segundo a lei n.º 69/2014,
de 29 de agosto,
no nosso país os animais passaram a estar protegidos de maus tratos, o que abrange
qualquer tipo de coacção física: dor, sofrimento, privação de alimentos,
abandono, mutilação ou morte. A pena mais pesada pode ir até aos dois anos de
prisão efectiva.
Referindo-se a pessoas, legalmente protegidas desde
logo pelos direitos humanos universalmente aceites, o conceito de maus tratos
inclui obviamente também qualquer tipo de coerção ou violência psicológica.
O que me leva a pensar: Que fariam se um professor vos
mandasse rastejar no chão ? De certeza que não obedeciam, e o professor teria
problemas, e apanharia com razão um processo em cima.
No entanto, como se viu em imagens passadas na TV,
submeter-se à praxe pode significar rastejar no chão, e a muito mais do que isso.
Milhares de espectadores viram, como eu, imagens gravadas no Pátio da
Universidade, em Coimbra, em que um grande grupo de caloiros, cercado por um
grupo igualmente grande de não caloiros, recebeu ordens para se ajoelhar no
chão, inclinar-se para a frente e baixar as calças. Dispenso-me de descrever a
cena de humilhação e sadismo que aconteceu a seguir, e ficou registada nas
imagens. No entanto, para muitos de vocês, aparentemente nada é violento nem excessivo. A praxe é
considerada intocável, acima dos
professores, reitores,
universidades, instituições e até da
lei, que assegura aos cidadãos direitos,
liberdades e garantias, que impedem qualquer tipo de violência e humilhação. No
entanto, estranhamente, para vocês a praxe parece ter um poder
incontestável - embora ela não tenha
qualquer validade jurídica, nem sequer obedeça a princípios
racionais. Para começar, os Duxes
são os que andam na Universidade há mais
tempo, somando portanto mais matrículas. Para isso basta ter dinheiro para pagar propinas
(embora eu deixe a pergunta se, em todos os casos, as propinas deles são
realmente pagas, e por quem). Uma vez que há numerus clausus, deixo também
a pergunta se eles não tiram o lugar a
outros estudantes, com mais capacidade de tirar um curso. Outra pergunta
elementar me ocorre: É possível não haver prazo limite para frequentar a
universidade? Esse tempo pode ser
ilimitado, quando o ensino, como tudo o
mais, depende dos impostos
que pagamos? Pelo menos até ao ano passado, havia um dux que há 24 anos que
somava matrículas, proeza heróica que gloriosamente o mantinha no cargo. E também pergunto o que se
passa no caso de todos os outros duxes, porque
o erário público é isso mesmo,um assunto público.
Mas o que mais me agride é que, na prática, vocês
passaram a estar muito menos protegidos do que os animais, em sentido próprio.
E a responsabilidade, em último caso, é vossa, porque se calam e
consentem, rejeitando ou ignorando a lei
em que vivem.
Em situações de perigo ou de desastre, se as praxes
descambarem em tragédia, não se espantem se as instituições não funcionarem, se
universidades, reitores, professores, polícia, tribunais, vos defenderem mal,
já que vocês são os primeiros a não querer ser defendidos: consideram que ninguém tem de saber nem de interferir no
que acontece nas praxes, juram a pés juntos
que são irrelevantes brincadeiras (o que
só algumas vezes é verdade, mas está muito longe de ser sempre), sublinham que são adultos, como se esse facto
vos permitisse fugir à lei que se aplica a toda a gente.
Sendo essa a
vossa posição, a opinião pública pouco
mais pode fazer do que deixar-vos sós. Fica no entanto um alerta: em caso de tudo correr mal, dir-se-á que vocês lá estavam por vontade própria, e que, se lá estavam, não estivessem.
Mas dói-me pensar
que vocês pretendem ser descartados desta forma: Se querem ser “animais”, com ou sem aspas, então
sejam. Boa sorte.
Qualquer cão ou gato está muito mais protegido que
vocês.
Teolinda Gersão
Ter uma discussão sóbria com uma pessoa que goste mesmo das praxes em relação a elas é impossível: "Tu não percebes, É tradição" é um argumento recorrente que faz lembrar as pessoas que defendem as touradas e outros tantos rituais macabros. "Todas as praxes são diferentes, nunca tiveste na minha" é outro, que faz lembrar os comunistas quando se lhes dá o exemplo de como esse sistema falhou na Rússia, China e Cuba mas eles dizem: Isso é porque não foi a MINHA versão de comunismo.
ResponderEliminarA verdade é que a praxe é gritar barbaridades 80% do tempo, olhar para o chão 19% e dizer olá chamo-me bla sou de bla 1% do tempo (mas é óptimo para conhecer pessoas!).
Estas pessoas precisam definitivamente de mais geometria e filosofia na sua vida.
/rant
-André Graça
Ou talvez precisem apenas de mais coragem...
ResponderEliminar