O excerto em
análise foi retirado do sétimo e último capítulo da obra Ways of Seeing, da autoria de John Berger, inspirada pela série de
televisão homónima da BBC (1972). Este capítulo é dedicado ao discurso
publicitário e às narrativas por ele criadas para aliciar os consumidores.
Berger sublinha a continuidade visual e simbólica entre a pintura a óleo
europeia e a publicidade contemporânea, apontando a problemática das
representações de género. Por outro lado, o autor explora a componente
fetichista do consumo — a equivalência simbólica entre poder de compra e
potência sexual; as propriedades mágicas dos produtos apresentados, cuja
aquisição promete recriar na vida do consumidor a narrativa que distingue o
produto publicitado.
Deste
modo, e focando-me no trecho em consideração, o discurso publicitário baseia-se
num sentido de temporalidade diferida, situa-se num futuro perfeito, sugerindo
que a felicidade está (quase) ao alcance do consumidor. Sendo o presente o
único momento em que podemos agir, o único tempo de agenciamento de que
dispomos, o discurso publicitário remete-nos para um tempo sem escolha, em que
a única ação possível é consumir. Esta estratégia torna o enredo publicitário
estático, na medida em que todos os anúncios com que nos deparamos repetem
idêntico convite, invalidando outras hipóteses de escolha (“the sense of having
has obliterated all other senses”).
Este
convite é feito através de um apelo à sensorialidade, na medida em que, e em
continuidade com a tradição pictórica europeia, a publicidade recorre à
verosimilhança, procurando recriar a tangibilidade dos objetos representados. Esta
opção retórica enfatiza o luxo, a satisfação, o estatuto e o glamour associados
aos produtos ou serviços publicitados, e facilita a identificação do consumidor
com as personagens perfeitas das narrativas publicitárias. A aura mágica de um
produto promete realizar maravilhas, estimula a inveja e a emulação, a
competitividade e o hedonismo. A materialidade das posses conforta-nos,
construímos a nossa identidade laboriosamente em torno de artefactos com
histórias dúbias (onde foram feitos os meus ténis, quem apanhou os minérios
raros incluídos no meu tablet?).
Assim, a
injunção ao consumo, omnipresente nos espaços por onde circulamos e na internet, elimina toda a miríade de ações
possíveis, em especial quando as políticas de planeamento urbano não contemplam
espaços públicos, e o único sítio de recreio e passeio é o centro comercial. A
escala de valores humanos torna-se restrita e controlada por corporações
geridas pela lógica do lucro, que tende a reger também o setor público, em que,
acreditavam as democracias, devia haver investimento desinteressado por parte
do coletivo, para serem assegurados uma série de direitos básicos. No entanto,
as imbricações das esferas política e económico-financeira transformaram o
cidadão em consumidor, socialmente definido pelo seu poder de compra.
Da
complexidade do indivíduo singular, o discurso publicitário engendra a
homogeneidade do consumidor, cujos instintos primários (fome, sexo, desejos de
segurança e de pertença social) são manipulados. Estas narrativas
contemporâneas à escala global propõem uma mundivisão restrita, centrada na
satisfação de um único desejo — adquirir mais e mais. O modelo de crescimento
em flecha ascendente do neo-liberalismo depende, pois, da indústria
publicitária, uma máquina de desejo que alimenta a concentração de capital em
cada vez menos maiores fortunas. Daí Berger alertar para a componente política
da publicidade, não só enquanto veículo ideológico, mas também como
colonizadora do imaginário coletivo.
O domínio
da massa populacional pelos grupos mais poderosos foi realizado durante muitos
séculos através da pobreza, hoje em dia, nos países ocidentais, que ainda detêm
a maior fatia de riqueza do planeta, a população é controlada através do
excesso material. Convencidos de que poder é equacionável com posse, os
consumidores entregam-se a uma narrativa de final constantemente adiado, pois o
desejo alimenta-se da sua própria insatisfação. Os padrões de escolha de grande
parte da população são, pois, definidos e controlados pela indústria
publicitária, que impõe um falso padrão de necessidades, segundo Berger. A
autonomia crítica e o agenciamento ficam seriamente comprometidos num mundo em
que os interesses de acumulação material se sobrepõem a todos os outros. Será,
pois, imperativo desenvolver competências analíticas para ler o mundo e
decifrar os seus sinais, de modo a podermos ser livres de escolher um rumo mais
nosso.