quinta-feira, 2 de abril de 2020

CONTRAPOINTS E CORPORALIDADE


Segundo o cânone clássico da filosofia acessível ao público pelo ensino secundário e pela opinião popular, quem filosofa são pessoas antigas de séculos passados, alemães rígidos com palavras compridas e sentido de dever. Dificilmente estabelecemos uma ponte entre o panteão dos filósofos e os assuntos mais quentes da contemporaneidade, como feminismo e políticas de género  no ocidente. Afinal quem é que participa na filosofia hoje em dia?
O tema da corporalidade, por exemplo, foi abordado em 1962 por Merleau-Ponty apontando uma relação entre a consciência social, cultural e o corpo: “A cultura científica ocidental requer que tomemos os nossos corpos simultaneamente como estruturas físicas e como estruturas experienciais vividas”.[1]  A corporalidade é o modo como habitamos o corpo ocupado por toda as questões da vida. Cada corpo tem uma experiência diferente. Cada uma destas experiências resulta de preconceitos, hábitos, medos e vivências.
Os intelectuais de hoje vêm de vários backgrounds, o canal de YoutUbe ContraPoints é um bom exemplo para começar. Natalie Wynn, a sua autora, é uma mulher transgénero que deixou a carreira universitária em Filosofia para se dedicar a este projeto. O seu canal nasceu para argumentar contra conteúdos alt-right (alternative right) e de extrema direita, discutindo também políticas de género no atual ambiente político. Por exemplo, o seu vídeo Men propõe um diálogo com uma comunidade pouco discutida na coletividade de esquerda na internet: os novos homens, adaptando-se às exigências dos tempos contemporâneos e sentindo-se, por vezes, atacados pelo discurso do feminismo radical(izado).



Natalie Wynn
Wynn sublinha que poucas pessoas têm a experiência de viver em dois géneros diferentes e poder olhar o mundo de perspetivas distintas. Sendo trans, a filósofa-performer admite que pode ter algo de interessante para partilhar relativamente à sua experiência. O facto de ser uma mulher branca fê-la perceber que, em geral, as mulheres têm direito a ser cuidadas, “os homens fazem coisas por mim”, andar à noite tornou-se mais assustador e agora não mete medo a ninguém (“ninguém tem medo de mim”). Ou seja, o fator que mudou não foi só o corpo, mas sim a forma como as outras pessoas respondem a esta corporalidade, social e culturalmente.
Segundo a youtuber, os homens são tratados como perigosos por definição. Isto pode ser malicioso especialmente se tivermos em conta outras identidades. Natalie Wynn conta a situação num elevador onde ela se encontrava sozinha com um homem negro, que começou a assobiar a música infantil “Row Row Your Boat”, numa tentativa de mostrar a sua inocência. Tendo em conta os preconceitos raciais da cultura estado-unidense, Wynn apercebeu-se de que aquele homem temeu que ela tivesse medo por estar sozinha com um homem negro. Sugiro, pois, vivamente uma tarde a ouvir os pensamentos e opiniões desta mulher e de outros youtubers como Kat Blaque e Oliver Thorn.


Kat Blaque
Ana Nobre

[1] Dreyfus, Hubert L. "The Embodied Mind, Cognitive Science and Human Experience" Mind, vol.102, no. 407, 1993.

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