sexta-feira, 10 de maio de 2019

Estratégias Consumistas do nosso TEMPO

Numa altura em que a nossa dependência de estímulos parece crescer inimaginavelmente, com crianças habituadas desde muito cedo a múltiplos ecrãs que lhes estimulam a produção de dopamina (neurotransmissor ligado a sensações de prazer), pareceu-me interessante vir aqui fazer uma retrospetiva da evolução, nos últimos anos, das estratégias dos meios de entretenimento, e o modo como, assim, nos exploram. Venho por isso apelar a um exercício de distanciamento, para vermos de uma perspetiva alargada, para não deixar que essas estratégias consumistas do nosso tempo, de procrastinação consumista, diminuam o nosso maior potencial de vida, o potencial de seguir sonhos ou simples objetivos do dia a dia. 

Neste sentido, e com o surgimento de indústrias específicas para os mais variados nichos de marketing, a indústria do entretenimento, com todas as áreas que contém, vem planeando meticulosamente formas de monopolizar o nosso tempo, que é talvez o bem mais precioso que temos. Neste caso, faz sentido dizer "tempo é dinheiro", pois tempo há de corresponder eventualmente a visualizações, audiência, consecutivamente, a publicidade, compras, terminando claro, em dinheiro. 

Comecemos então pela rede social base... o Facebook. Muitas vezes referenciado como uma ferramenta, rapidamente se torna uma fonte de procrastinação. Claro que tudo pode tornar-se uma fonte de procrastinação, sem dúvida. No entanto, com as redes sociais e a televisão, entre outros, trata-se de algo planeado para esse mesmo fim. Pretende-se a todo o custo manter o indivíduo ali preso, viciado, com hits de dopamina a cada clique. É neste âmbito que surgem duas recentes estratégias por parte do Facebook, de Mark Zuckenberg. 

Primeiro, mesmo que tentemos usar o Facebook como uma ferramenta de trabalho, de estudo, de comunicação, o scroll infinito rapidamente propõe vários posts, geralmente inúteis, que tentam o indivíduo a parar neles. Antes, os vídeos de posts, ainda que talvez com clickbaity titles, só começavam quando alguém carregasse play. Agora, no entanto, o facebook força nos a ver esses vídeos, com o chamado sistema auto-play no computador. Os vídeos começam a passarainda que sem som, e mais probabilidade temos de a nossa atenção ficar retida naquele post. E uma coisa leva à outra; a nossa curiosidade faz-nos instintivamente querer o som, e compreender o post que  nos fisgou visualmenteMas claro, bastaria, depois de uns segundos, o indivíduo perceber a inutilidade de determinado vídeo, e continuar o seu scroll down, certo? Errado, caso interrompamos o vídeo, há um outro update que o faz surgir numa pequena caixinha de lado, acompanhando o nosso movimento, sempre a bombardear-nos com estímulos, enquanto a cada post recebemos ainda mais hits de dopamina. Ora, como num qualquer vício, o corpo habitua-se às doses que recebe, e começa a pedir mais. 
É isso que parece ocorrer nas gerações mais novas incluindo a nossa, em que por vezes uma fonte de entretenimento já não é suficiente. Precisamos da televisão ligada, do telemóvel, do tablet; muitas vezes todos ao mesmo tempo. E enquanto estamos a receber estes estímulos,  agora o vídeo para a meio para publicidade, algo baseado no que se faz na televisão. Trata-se de anúncios que aparecem a meio do vídeo, de modo a deixarem o espetador ansioso por retomar a linha narrativa apresentada. Na verdade, quando começaram a surgir os vídeos no Facebook, e quando surgiu o auto-play, não havia anúncios nestes. Eles surgiram devido a experiências, realizadas primeiro no YouTube, onde as pessoas se habituaram, e depois, mais tarde, no Facebook.  Por vezes, no Facebook, até colocam vídeos assim, repetidos duas vezes no mesmo post, de uma forma ambígua, em que parece haver uma continuidade visual, quando, na verdade, se trata de uma repetição, antes de um replay automático. 


Por outro lado, também podemos encontrar este tipo de situação no YouTube. Se antes talvez nos conseguíssemos concentrar completamente no vídeo escolhido, agora parece que, para grande parte das pessoas, esse estímulo não chega, daí que, tal como no Facebook, começarem a ler comentários de outras pessoas, enquanto ouvem o vídeo, talvez com outros dispositivos ligados em simultâneo. É fácil verificar isso, analisando os comentários de inúmeros vídeos, que se relacionam com esse "grupo" ou amostra. Para além disso, muitos dos comentários revelam que as recomendações do YouTube na página, e o auto-play também imbuído, levaram os visitantes à procrastinação, chamados por um vídeo que à partida não tinham interesse em ver, coagidos pelo vício por estímulos. Quanto à presença de anúncios, verifica-se a mesma trajetória. Só depois de uns anos, é que os anúncios começaram a surgir, e atualmente, já colocam dois anúncios num vídeo, um no início e outro no fim. E logo depois, o que acontece? O YouTube lança uma membership, sugerindo que se pagarmos podemos não ver constantemente estes anúncios. Cá está, habituam-nos devagarinho, vão aumentando, e depois usam isso para fins monetários (algo como o que o Mb Way parece estar a fazer com as suas transferências que irão passar a ser pagas, agora que muitos já usam a aplicação). 



Há também algo interessante, que apenas descobri há dias, no novo algoritmo de Instagram. Sendo uma ferramenta incrivelmente útil e especialmente relevante na sociedade visual atual, o Instagram é bastante utilizado por pequenos negócios ou por artistas que querem divulgar os seus produtos/trabalhos. No entanto, este novo algoritmo determina que a quantidade de tempo gasto na aplicação vai influenciar diretamente a quantidade de visualizações que o post irá ter. Porquê? Segundo a própria empresa, o Instagram pretende recompensar as pessoas que mais estão presentes na rede social, que mais interagem com o público, o que significa que alguém que está constantemente a colocar histórias, publica todos os dias, comenta várias fotos de outras pessoas, ou apenas dá likes em resposta a histórias, irá ter à partida mais visualizações num post feito à mesma hora por outra pessoa com o mesmo número de seguidores mas que só publica duas vezes por semana, estando mais ocupada com a vida “real”. Mais radicalmente, tenta-se treinar, domesticar o indivíduo fomentando a sua vida virtual e sacrificando a sua vida real.  



Contudo, esta obsessão com estímulos está presente nos vários meios de entretenimento, não só nas redes sociais e internet. Por exemplo, no meio da televisão, também são usadas estratégias para manter o espetador, preso ao ecrã. Algo que não acontecia na década anterior, é agora quotidiano, em canais por exemplo da Fox. Quando um programa acabava, um episódio, um filme, havia um pequeno intervalo com publicidade, antes do próximo. E o espetador, tendo terminado a sua jornada ficcional, sentia-se livre para passar a outra ação, regressando ao trabalho, por exemplo. Atualmente, no entanto, logo que termina um filme, começa imediatamente outro que tenta fisgar o espetador. Assim, se a publicidade, i.e., o intervalo, for no meio do visionamento, há mais probabilidades de o indivíduo, nós!, aguentarmos os anúncios e vermos mais do que um programa. Mesmo em sites de notícias, como a SIC notícias, os anúncios também têm a sua funcionalidade de auto-play, espelhando assim o mecanismo da televisão: recebes este conteúdo (as notícias) vendo o anúncio.  



Em suma, com estratégias cada vez mais pensadas para controlar o indivíduo, para monopolizar o seu tempo, torna-se fulcral construir uma disciplina forte para que não nos deixemos levar. É por isso importante, na minha opinião, fazermos regularmente exercícios de distanciamento destes meios de entretenimento para os observarmos de outra perspetiva, uma perspetiva mais crítica e objetiva, capaz de identificar estes mecanismos, e nos permitir emancipar do alheamento da vida que eles nos propõem, tal como sugere, aliás, a área disciplinar da Cultura Visual. 

António Santos 150381 

1 comentário:

  1. Grata pelas suas reflexões, António, que nos ajudam a desenvolver um mais apurado sentido crítico no modo como usamos estes instrumentos de comunicação.

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