Numa altura em que a nossa dependência de estímulos parece crescer inimaginavelmente, com crianças habituadas desde muito cedo a múltiplos ecrãs que lhes estimulam a produção de dopamina (neurotransmissor ligado a sensações de prazer), pareceu-me interessante vir aqui fazer uma retrospetiva da evolução, nos últimos anos, das estratégias dos meios de entretenimento, e o modo como, assim, nos exploram. Venho por isso apelar a um exercício de distanciamento, para vermos de uma perspetiva alargada, para não deixar que essas estratégias consumistas do nosso tempo, de procrastinação consumista, diminuam o nosso maior potencial de vida, o potencial de seguir sonhos ou simples objetivos do dia a dia.
Neste sentido, e com o surgimento de indústrias específicas para os mais variados nichos de marketing, a indústria do entretenimento, com todas as áreas que contém, vem planeando meticulosamente formas de monopolizar o nosso tempo, que é talvez o bem mais precioso que temos. Neste caso, faz sentido dizer "tempo é dinheiro", pois tempo há de corresponder eventualmente a visualizações, audiência, consecutivamente, a publicidade, compras, terminando claro, em dinheiro.
Comecemos então pela rede social base... o Facebook. Muitas vezes referenciado como uma ferramenta, rapidamente se torna uma fonte de procrastinação. Claro que tudo pode tornar-se uma fonte de procrastinação, sem dúvida. No entanto, com as redes sociais e a televisão, entre outros, trata-se de algo planeado para esse mesmo fim. Pretende-se a todo o custo manter o indivíduo ali preso, viciado, com hits de dopamina a cada clique. É neste âmbito que surgem duas recentes estratégias por parte do Facebook, de Mark Zuckenberg.
Primeiro, mesmo que tentemos usar o Facebook como uma ferramenta de trabalho, de estudo, de comunicação, o scroll infinito rapidamente propõe vários posts, geralmente inúteis, que tentam o indivíduo a parar neles. Antes, os vídeos de posts, ainda que talvez com clickbaity titles, só começavam quando alguém carregasse play. Agora, no entanto, o facebook força nos a ver esses vídeos, com o chamado sistema auto-play no computador. Os vídeos começam a passar, ainda que sem som, e mais probabilidade temos de a nossa atenção ficar retida naquele post. E uma coisa leva à outra; a nossa curiosidade faz-nos instintivamente querer o som, e compreender o post que já nos fisgou visualmente. Mas claro, bastaria, depois de uns segundos, o indivíduo perceber a inutilidade de determinado vídeo, e continuar o seu scroll down, certo? Errado, caso interrompamos o vídeo, há um outro update que o faz surgir numa pequena caixinha de lado, acompanhando o nosso movimento, sempre a bombardear-nos com estímulos, enquanto a cada post recebemos ainda mais hits de dopamina. Ora, como num qualquer vício, o corpo habitua-se às doses que recebe, e começa a pedir mais.
É isso que parece ocorrer nas gerações mais novas incluindo a nossa, em que por vezes uma fonte de entretenimento já não é suficiente. Precisamos da televisão ligada, do telemóvel, do tablet; muitas vezes todos ao mesmo tempo. E enquanto estamos a receber estes estímulos, agora o vídeo para a meio para publicidade, algo baseado no que se faz na televisão. Trata-se de anúncios
que aparecem a meio do vídeo, de modo a
deixarem o espetador ansioso por retomar a linha narrativa apresentada. Na verdade, quando começaram a surgir os vídeos no Facebook, e quando surgiu o auto-play, não havia anúncios nestes. Eles surgiram devido a experiências, realizadas primeiro no YouTube, onde as pessoas se habituaram, e depois, mais tarde, no Facebook. Por vezes, no Facebook, até colocam vídeos assim, repetidos duas vezes no mesmo post, de uma forma ambígua, em que parece haver uma continuidade visual, quando, na verdade, se trata de uma repetição, antes de um replay automático.
Por outro lado, também podemos encontrar
este tipo de situação no YouTube. Se antes talvez nos
conseguíssemos concentrar completamente no vídeo escolhido, agora parece que,
para grande parte das pessoas, esse estímulo não chega, daí que, tal como
no Facebook, começarem a ler comentários de outras pessoas,
enquanto ouvem o vídeo, talvez com outros dispositivos ligados em simultâneo. É
fácil verificar isso, analisando os comentários de inúmeros vídeos, que se
relacionam com esse "grupo" ou amostra. Para além disso, muitos dos
comentários revelam que as recomendações do YouTube na página,
e o auto-play também imbuído, levaram os visitantes à procrastinação,
chamados por um vídeo que à partida não tinham interesse em ver, coagidos pelo vício
por estímulos. Quanto à presença de anúncios, verifica-se a mesma trajetória.
Só depois de uns anos, é que os anúncios começaram a surgir, e atualmente, já
colocam dois anúncios num vídeo, um no início e outro no fim. E logo
depois, o que acontece? O YouTube lança uma membership,
sugerindo que se pagarmos podemos não ver constantemente estes anúncios. Cá
está, habituam-nos devagarinho, vão aumentando, e depois usam isso para fins
monetários (algo como o que o Mb Way parece estar a fazer
com as suas transferências que irão passar a ser pagas, agora que muitos já
usam a aplicação).
Há também algo interessante, que apenas
descobri há dias, no novo algoritmo de Instagram. Sendo uma
ferramenta incrivelmente útil e especialmente relevante na sociedade visual
atual, o Instagram é bastante utilizado por pequenos negócios ou
por artistas que querem divulgar os seus produtos/trabalhos. No entanto, este
novo algoritmo determina que a quantidade de tempo gasto na aplicação vai
influenciar diretamente a quantidade de visualizações que o post irá
ter. Porquê? Segundo a própria empresa, o Instagram pretende
recompensar as pessoas que mais estão presentes na rede social, que mais
interagem com o público, o que significa que alguém que está constantemente a
colocar histórias, publica todos os dias, comenta várias fotos de outras
pessoas, ou apenas dá likes em resposta a histórias, irá ter à
partida mais visualizações num post feito à mesma hora por
outra pessoa com o mesmo número de seguidores mas que só publica duas vezes por
semana, estando mais ocupada com a vida “real”. Mais radicalmente, tenta-se
treinar, domesticar o indivíduo fomentando a sua vida virtual e sacrificando a
sua vida real.
Contudo, esta obsessão com estímulos está
presente nos vários meios de entretenimento, não só nas redes sociais e
internet. Por exemplo, no meio da televisão, também são usadas estratégias para
manter o espetador, preso ao ecrã. Algo que não acontecia na década anterior, é
agora quotidiano, em canais por exemplo da Fox. Quando um programa acabava, um
episódio, um filme, havia um pequeno intervalo com publicidade, antes do
próximo. E o espetador, tendo terminado a sua jornada ficcional, sentia-se
livre para passar a outra ação, regressando ao trabalho, por exemplo.
Atualmente, no entanto, logo que termina um filme, começa imediatamente outro
que tenta fisgar o espetador. Assim, se a publicidade, i.e., o intervalo, for
no meio do visionamento, há mais probabilidades de o indivíduo, nós!, aguentarmos
os anúncios e vermos mais do que um programa. Mesmo em sites de
notícias, como a SIC notícias, os anúncios também têm a sua funcionalidade
de auto-play, espelhando assim o mecanismo da televisão:
recebes este conteúdo (as notícias) vendo o anúncio.
Em suma, com estratégias cada vez mais
pensadas para controlar o indivíduo, para monopolizar o seu tempo, torna-se
fulcral construir uma disciplina forte para que não nos deixemos levar.
É por isso importante, na minha opinião, fazermos regularmente exercícios
de distanciamento destes meios de entretenimento para os observarmos de outra
perspetiva, uma perspetiva mais crítica e objetiva, capaz de identificar estes
mecanismos, e nos permitir emancipar do alheamento da vida que eles nos propõem,
tal como sugere, aliás, a área disciplinar da Cultura Visual.
António Santos 150381