O
documentário pretende fazer-nos refletir sobre a arte – dum ponto de vista
ocidental, mais precisamente europeu – compreendida entre o final do séc. XV e
o início do séc. XX.
O
modo como acedemos às obras relativas a este período é altamente inovadora, na
medida em que para vislumbrá-las já não precisamos de nos deslocar às suas
respetivas ´moradas´. Até ao advento da câmara fotográfica, ninguém havia visto
estas obras como hoje podemos vê-las.
Assim como a perspetiva na
representação pictórica foi inovadora, também estas novas perspetivas
fornecidas pela imagem em movimento são. Esta ilusão de profundidade, conferida
às representações realistas mediante o uso da perspetiva, permitiu um mimetismo
absoluto da realidade. No entanto, é com o advento da câmara de filmar que o
olhar humano adquire uma omnipresença até então impensável. Há ainda uma
série de inovações na maneira de apreender as imagens, a câmara mostra-nos a
perspetiva de terceiros, revelando os múltiplos ângulos de um determinado
objeto. Esta libertação da imagem que originou o derrube das fronteiras em que
se encontrava confinada, assim como as barreiras do tempo, servia/serve para
fornecer novas coordenadas interpretativas do mundo e consequentemente de nós
mesmos. Podemos planar sobre determinada realidade como os pássaros, escolher e
focar determinado ponto ou objeto para melhor o compreender, ou para melhor o
caçar. A câmara muda não só o que vemos, mas a maneira como vemos.
De facto, tendo em conta o
que acima foi exposto, nenhuma perspetiva pode ser entendida como verdadeira e
total.
A pintura, ou as pinturas,
só pode(m) ser captada(s) à vez, assim como só pode(m) estar expostas num lugar
de cada vez. Porém, a reprodução destas imagens – mediante a câmara – torna-as
disponíveis em qualquer dimensão, em qualquer geografia e para qualquer
propósito.
Originalmente, as obras,
tal como as nossas vidas eram destinadas a um determinado propósito; a sua/nossa
função estava definida.
A Vénus de Botticelli
apenas podia ser vista na sala em que se encontrava exposta, nos dias que
correm esta obra pode ser vista por milhões de pessoas, em diferentes locais e
ao mesmo tempo. Estas imagens são vistas dentro do contexto da nossa vida, com
a nossa música, no nosso oikos, em suma, à nossa maneira.
As imagens vêm até nós,
não há necessidade de nos deslocarmos até elas. Os dias de peregrinação
acabaram. A imagem viaja do mesmo modo que Berger viaja até nós mediado pelo
vídeo. O significado da pintura já não reside unicamente no suporte que a
confina a um determinado lugar, e consequentemente a um determinado momento
histórico. A imagem transformou-se em informação, os rostos das pinturas
tornam-se mensagens passíveis de ser manipuladas e de manipular. No entanto, os
originais continuam a ser únicos, pois são diferentes das reproduções que vemos
nos postais, ou até mesmo filmadas na televisão.
Há, diante as obras de
arte uma narrativa mistificadora que serve propósitos do ego de quem a
descreve, ou propósitos económicos (o valor de mercado). Este valor depende
inteiramente do facto da obra ser genuína, daí toda a necessidade que as
instituições museológicas têm em aferir a autenticidade das peças que integram
a sua coleção. Todos preferem ver a “Virgem dos Rochedos” de Leonardo da Vinci
na National Gallery, visto que é essa a certificada, a autêntica.
Contrariamente a esta narrativa mistificadora temos a análise das crianças, que
interpretam as imagens de forma muito direta, relacionando-as com as suas
expectativas pessoais.
Por
fim, Berger lembra-nos que as imagens são portadoras de diversas narrativas que
encerram em si múltiplas visões do mundo. As imagens são como as palavras, ou a
música – esse conduto r emocional por excelência. Escolhemos as que melhor
veiculam a nossa ideia, o nosso programa ideológico.
Nilton Fonseca
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Com
a introdução da fotografia e posteriormente do vídeo, o valor intrínseco das
pinturas ficou ou foi inevitavelmente alterado. Estas democratizaram-se e as
pessoas “comuns” passaram a ter acesso a imagens que antes apenas poderiam ver
nas igrejas e nos conventos, ou cunhadas em moedas, por exemplo.
Neste
primeiro episódio de Ways of Seeing, John Berger procura demonstrar que
a alteração do valor inerente às obras de arte deveu-se exatamente a essa
democratização, ocorrida com o surgimento de formas simplificadas de reprodução
das imagens/pinturas.
John Berger recusa a religiosidade e o pedantismo
que atualmente, na maioria das vezes, é atribuído a muitas obras de arte. A
singularidade das pinturas perdeu-se com a multiplicidade dos espaços em que
estas passaram a poder ser observadas, obtendo, consequentemente, uma
multiplicidade de sentidos em função desses mesmos espaços, em função do
observador, do seu estado de espírito e de uma multiplicidade de fatores.
As
imagens resultantes dessas pinturas passaram assim a serem utilizadas para fins
diversos daqueles inicialmente pensados pelo seu autor (vide A última
ceia, de Leonardo da Vinci, um fresco que se encontra no antigo refeitório
de um convento em Milão). Segundo o autor, atualmente, a singularidade visa
apenas aumentar o valor venal das obras de arte. Ainda que por vezes de forma
muito subliminar, quase impercetível, também poderá servir para outros fins
comerciais, como os usados na publicidade, permitindo a atribuição de uma maior
grandeza ao produto anunciado (vide a referência à Vitória de Samotrácia
utilizada para promover os carros de luxo da Rolls Royce).
J.
Berger vem assim alertar para a ambiguidade que a introdução de múltiplos meios
de difusão veio introduzir no sentido das obras de arte.
Pedro Penaguião