segunda-feira, 25 de maio de 2015

Um testemunho

Sinto-me abusado quando caminho pela cidade.

Para onde quer que olhe a minha visão vai sempre ter ao encontro destas personagens: sombras fugazes de vidas que não existem. Sabem a sensação quando uma pessoa que vos fez mal, ou que simplesmente não vos transmite confiança, se aproxima de vocês, monologa convosco, sem sequer haver consentimento? É isto a publicidade. Uma constante aproximação sem consentimento, em que empresas, através de imagens e textos, abusam da nossa intimidade e privacidade. Criticam-nos sem lhes termos dado confiança para tal. Delimitam-nos a modelos idealizados, sem considerarem todo o potencial de cada ser.  

O pior é que este mundo fictício, que abusa da nossa vida, que se entranha sem autorização no nosso dia a dia, já nos está a corroer.

As pessoas estão a tornar-se caricaturas daquilo que vêem na televisão, que lêem nas revistas, que assimilam nos grandes e nos pequenos cartazes. A dimensão profunda de cada ser, dotada de muito mais do que linhas simples e rectas, é subterrada em estereótipos, futilidades. Esta dimensão é recusada pelo hedonismo, pelos valores que vigoram. O pior mal é que isto não é culpa destes seres atirados ao mundo, pois vivem num contexto que constantemente os manipula e coarcta. Há muitos que inconscientemente vão vivendo no mundo "normal", aplicando as regras hegemónicas na sua vida, de acordo com o processo de socialização a que foram submetidos. Tal como no regime nazi os soldados cumpriam a sua função, nunca tendo noção do grande plano, estes seres desempenham cegamente as funções que lhes couberam, sem se aperceberem do contexto mais amplo. Os grandes agentes deste mundo também conseguiram incutir nas pessoas que outras ideias estão erradas, e que são impossíveis de concretizar. A única alternativa é lentamente esgotar o nosso potencial em lenta e corrosiva monotonia.

Vale a pena esgotar todo o potencial humano por uma ideia momentânea, fruto de uma época?    

A publicidade, tal como este sistema, não está só fora de nós. Andamos com as marcas nas roupas, na alimentação, na mente. Aceitamos trabalhos/explorações para publicitar: carregar logos nas nossas costas, reduzindo-nos a uma marca; tocamos música em praça pública, não para manifestar a nossa criatividade, mas para publicitar; ficamos despidos, a fazer de manequins vivos nas montras, vivos mas mortos.

Sinto-me abusado, por vezes, ao entrar na nossa faculdade. Em tempos, a PIDE não podia entrar no espaço universitário, e um espaço que podia ser um santuário, afastado das imagens violadoras do exterior, é, na verdade, um espaço que as acolhe. Associam-nos a um cartão de estudante ligado a um banco; querem-nos constantemente vender sorrisos falsos e muita loucura quando entramos para o ensino superior.

No passado, os iconoclastas destruíram imagens religiosas pois achavam blasfemo haver sequer tentativas de representar o divino. Que venham os iconoclastas do novo século! Destruam todos estes ícones que tentam representar o irrepresentável. A potencialidade humana é ilimitada e a caricatura, o consumidor que é representado, não passa de um insulto ao ser humano.

Rogério Cruz

2 comentários:

  1. Hoje sinto o mesmo em TODOS os lugares.
    É horrível.
    Max

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  2. Grata por partilhar a sua reflexão, Rogério. É importante termos consciência desta invasão, para podermos reclamar espaço vazio (onde poder sonhar, pensar, criar). Partilhei convosco a dureza que é para mim habitar o mundo urbano, onde há o constante apelo à leitura (sejam os textos visuais ou verbais). Com a consciência vem a responsabilidade de agir… espero as vossas respostas!

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