domingo, 14 de dezembro de 2014

Grelha de correção da análise de texto


O excerto em análise foi retirado do sétimo e último capítulo da obra Ways of Seeing, da autoria de John Berger, inspirada pela série de televisão homónima da BBC (1972). Este capítulo é dedicado ao discurso publicitário e às narrativas por ele criadas para aliciar os consumidores. Berger sublinha a continuidade visual e simbólica entre a pintura a óleo europeia e a publicidade contemporânea, apontando a problemática das representações de género. Por outro lado, o autor explora a componente fetichista do consumo — a equivalência simbólica entre poder de compra e potência sexual; as propriedades mágicas dos produtos apresentados, cuja aquisição promete recriar na vida do consumidor a narrativa que distingue o produto publicitado.
Deste modo, e focando-me no trecho em consideração, o discurso publicitário baseia-se num sentido de temporalidade diferida, situa-se num futuro perfeito, sugerindo que a felicidade está (quase) ao alcance do consumidor. Sendo o presente o único momento em que podemos agir, o único tempo de agenciamento de que dispomos, o discurso publicitário remete-nos para um tempo sem escolha, em que a única ação possível é consumir. Esta estratégia torna o enredo publicitário estático, na medida em que todos os anúncios com que nos deparamos repetem idêntico convite, invalidando outras hipóteses de escolha (“the sense of having has obliterated all other senses”).
Este convite é feito através de um apelo à sensorialidade, na medida em que, e em continuidade com a tradição pictórica europeia, a publicidade recorre à verosimilhança, procurando recriar a tangibilidade dos objetos representados. Esta opção retórica enfatiza o luxo, a satisfação, o estatuto e o glamour associados aos produtos ou serviços publicitados, e facilita a identificação do consumidor com as personagens perfeitas das narrativas publicitárias. A aura mágica de um produto promete realizar maravilhas, estimula a inveja e a emulação, a competitividade e o hedonismo. A materialidade das posses conforta-nos, construímos a nossa identidade laboriosamente em torno de artefactos com histórias dúbias (onde foram feitos os meus ténis, quem apanhou os minérios raros incluídos no meu tablet?).
Assim, a injunção ao consumo, omnipresente nos espaços por onde circulamos e na internet, elimina toda a miríade de ações possíveis, em especial quando as políticas de planeamento urbano não contemplam espaços públicos, e o único sítio de recreio e passeio é o centro comercial. A escala de valores humanos torna-se restrita e controlada por corporações geridas pela lógica do lucro, que tende a reger também o setor público, em que, acreditavam as democracias, devia haver investimento desinteressado por parte do coletivo, para serem assegurados uma série de direitos básicos. No entanto, as imbricações das esferas política e económico-financeira transformaram o cidadão em consumidor, socialmente definido pelo seu poder de compra.
Da complexidade do indivíduo singular, o discurso publicitário engendra a homogeneidade do consumidor, cujos instintos primários (fome, sexo, desejos de segurança e de pertença social) são manipulados. Estas narrativas contemporâneas à escala global propõem uma mundivisão restrita, centrada na satisfação de um único desejo — adquirir mais e mais. O modelo de crescimento em flecha ascendente do neo-liberalismo depende, pois, da indústria publicitária, uma máquina de desejo que alimenta a concentração de capital em cada vez menos maiores fortunas. Daí Berger alertar para a componente política da publicidade, não só enquanto veículo ideológico, mas também como colonizadora do imaginário coletivo.
O domínio da massa populacional pelos grupos mais poderosos foi realizado durante muitos séculos através da pobreza, hoje em dia, nos países ocidentais, que ainda detêm a maior fatia de riqueza do planeta, a população é controlada através do excesso material. Convencidos de que poder é equacionável com posse, os consumidores entregam-se a uma narrativa de final constantemente adiado, pois o desejo alimenta-se da sua própria insatisfação. Os padrões de escolha de grande parte da população são, pois, definidos e controlados pela indústria publicitária, que impõe um falso padrão de necessidades, segundo Berger. A autonomia crítica e o agenciamento ficam seriamente comprometidos num mundo em que os interesses de acumulação material se sobrepõem a todos os outros. Será, pois, imperativo desenvolver competências analíticas para ler o mundo e decifrar os seus sinais, de modo a podermos ser livres de escolher um rumo mais nosso.

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